14 de dez. de 2011

viagens cotidianas - chocolate


Entrou no ônibus. Janela livre, uma dádiva. Trinta segundos depois de sentar, lembrou, como de costume sempre lembrava: esqueci o livro, um livro. Qualquer distração. A viagem será longa. Milhões aproximam-se nas ruas do Recife, o trânsito das seis e meia. Tanta gente junta, tanta gente só. O vasto número de pessoas sequer dilui minha solidão. Solidez de mãos e corações. É grave. Dessa vez, o cheiro exalado pela Fábrica é indubitável: chocolate. Chocolate, leite e manteiga borbulhando na caldeira, misturados. O cheiro em nada me lembra o teu sopro, mas a cor. Imagino montanhas, tuas costas. E o calor. O teu calor que eu recebo quando me molhas de suor.

28 de nov. de 2011

ato involuntário



Memória seletiva. Sofro de um problema crônico. As lembranças que em mim perduram são solares, ilustres, supras, úmidas, sorridas e mansas. Memórias que guardo são as boas. Indeléveis. Essas, de você tenho bastantes.

paixão nos dentes


marco-me a ferro e fogo
até o osso
dissipo a dor
a dente

até findar a força
e não restar
sequer uma gota
do que se sente

11 de jul. de 2011

nós


quero um dia perfeito:
céu cor de arrebol,
meu vestido azul,
sua camisa de sol.
nós dois em brasa,
anoitecendo,
e todos os nós
se desfazendo.

16 de jun. de 2011

Parece coisa.





parece que todas as coisas
estão em silêncio
tuM tUM TUM
tamanho é o barulho
do meu coração

parece que todas as coisas
restam paradas
estão imóveis, estátuas
tão grande é o frisson
no meu coração

parece até que meu
coração virou coisa
pra você poder pegar
rendilhar e deixar desse jeito.
parece não, é.




20 de mai. de 2011

desejo em desordem

meu travesseiro te transpira
sinto
meu coração que palpita
caminho sem ninho pro sonhar
sonho
com você acordar

girafa no braço
ningúem do meu lado
faltam teus pés
pra me acalmar

28 de abr. de 2011

prato-feito



não tem mais jeito mesmo
bem comeste o meu queijo
pra mim já és um prato-feito
para todas as refeições

5 de abr. de 2011

Voracidade Lírica

"Entregaram-se à idolatria dos corpos, ao descobrir que os tédios do amor tinham possibilidades inexploradas, muito mais ricas que as do desejo. Enquanto ele amaciava com claras de ovo os seios eréteis de Amaranta Úrsula, ou suavizada com gordura de coco as suas coxas elásticas e o seu ventre de pêssego, ela brincava de boneca com a portentosa criatura de Aureliano e pintava-lhe olhos de palhaço com batom e bigodes de turco com lápis de sobrancelhas e armava-lhe laços de organza e chapeuzinhos de papel prateado. Uma noite se lambuzaram dos pés à cabeça com pêssegos em calda, lamberam-se como cães e se amaram como loucos no chão da varanda, e foram acordados por uma torrente de formigas carnívoras que se dispunham a devorá-los vivos."
Cem anos de solidão - Gabriel García Márques

22 de mar. de 2011

Manhãs


Chocolate, baunilha ou laranja. Dessa vez não deu pra perceber o sabor. O cheiro que a fábrica exalava era simplesmente cheiro de mistura boa fervendo na panela. A imagem do ar de cheiro bom não definido me fez lembrar imediatamente da tua respiração quente das manhãs em que despertei primeiro e permaneci ao teu lado, como quem ainda dormia, só pra sentir o aconchego do teu corpo e teu sopro morno matinal em mim.

1 de mar. de 2011

haicai-minuto

Tudo arrumado
Tu do meu lado
Tudo tem rumo

21 de fev. de 2011

sabimento descabido que não cabe

assim que
vejo
bate no
peito

agora não tem mais jeito.

já nem sei
você
virei
teu.

7 de fev. de 2011

Fragmentos I

"Nossos planos se movem e às vezes ficamos tontos. É incrível entender nós dois como algo fora desse mundo. Entendo a real e me sinto feliz em saber do bonde nós dois juntos. É como crescer grama no concreto, só porque flores são cliché demais, ou demasiadamente frescas para crescer no cimento cru. Vamos fazendo agora pra depois. Vamos plantando grama e quem sabe cresce concreto. Eu não preciso, eu impreciso diminuir as coisas que vivi pra saber que você é grande, que nós somos maiores. Eu sou bom, nós melhores. Eu alguém, nós além. Sinto vontade de rolar num chão de areia onde escreveremos nossos nomes (juntos) juntos, sem coração visível, e que o mar apague de verdade quando a maré encher, depois de molharmos os pés."

Não vou parar de sorrir enquanto você sorrir junto.

21 de jan. de 2011

cura


assarapanta
para todo mal
existe dança

20 de jan. de 2011

Gota


A gota
pende.
Cai,
ainda que tente.

17 de jan. de 2011

ironia na rodovia


faz tempo que não vejo
passar o bonde nós dois
fecho os olhos pra não contar os dias
não quero crer que não vamos ser
tudo aquilo que eu queria

ironia
eu e minhas fantasias

15 de jan. de 2011

desatento

e no interior do mais pequeno
abre-se profundo
a flor do espaço mais imenso.
Basta estar
desatento.

13 de jan. de 2011

sobras sustentáveis



sobra tempo, gasto
gasto as horas
deito, brinco, invento
sobram desejos
me desdobro
dou um jeito
decidi que serei feito de inteiros

falta pano
sobra perna
falta luz
sobra o espanto
ohs ahs heins
sobram detalhes
não falta quem os destaque

falta voz
me calo
te falo por beijos
sobra beijo
falta noite
pra gastar da melhor forma
a duração eterna dos instantes
oras

quem é que não vive de sobras?

12 de jan. de 2011

Não desbota, essa cor.


lúcida me vejo
olhos no espelho
percebo, eu mereço
todo esse descaminho.

não venham me falar
de fé e de milagres
ou de meras formalidades
cada um merece o que tem.

mas não há dor
que não se cure
nem substância
que desbote essa cor.

aprendi faz tempo
por frases malucas:
a alma só cresce
quando se machuca.
o prazer de usar a linguagem é um dos prazeres humanos maiores.